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Conto "A História não é sobre mim"

 

 ‘A história não é sobre mim’ é um conto concebido durante a pandemia, que conta a história de Lua, uma jovem desprovida de paz mental por ser vítima da maldade dos homens. Uma rapariga albina que sofre de depressão, que a priori parece que o motivo da mesma é a sua falta de aceitação, mas não.

Quando alguém faz troça da nossa aparência, nos rimos de nós próprios para disfarçar o incómodo, mas quando ridicularizamos alguém, mostramos a nossa essência.

 

 

A história não é sobre mim

 

O banco estava quente e queimava as minhas nádegas intocadas. Olhei para o relógio mais de cinco vezes e nada. Michel estava atrasado, o que era raro de um exibicionista de perfeição. Os cochichos a minha volta alertaram-me que ela estava por perto. Ela andava devagar, com a cara mais trancada do que o cofre da casa do Tio Zinho onde guardou os 100 dólares falsos que lhe tinam sido deixados como herança. Ela parecia odiar o mundo, e consequentemente, o mundo odiava-lhe. Esse mundo era uma pandemia de todos os seus vizinhos e todas as pessoas que eram colateralmente afectadas pela sua expressão de nojo e as suas respostas mais tortas que as minhas pernas. Se eu não tivesse lido os milhares de livros que o Michel me obrigou, eu não saberia decifrar que o ódio a sua volta não era por ela ser albina, mas por ela não gostar de ser.

 

Atrapalhada, encolheu-se, seus ombros mostravam a vergonha que vivia em si, por ser assim... diferente. Ela fazia-me lembrar o sol, bonito de apreciar, mas difícil de encarar. O sol é suportável através do vidro, mas quando nos deparamos com ele, nos escondemos nas sombrinhas, nos protectores solares e por aí. Trazia vestida uma blusa rosa clara, que combinava perfeitamente com o seu tom de pele, semelhante ao algodão doce.

 

Ela tinha vinte e poucos anos, e pela sua pontualidade em deitar o lixo deduzi que ansiava por aqueles minutos de alforria da quarentena. Enquanto eu ansiava por alguns minutos de descanso. Estava saturada de ver pessoas a entrarem na emergência aflitos e a saírem inconsolados. O vírus era como um ‘serial killer’ mas sem qualquer historial de traumas que justifica os seus crimes. E durantes esta calamidade, esse assassino ia expor muito mais do que organismos sensíveis.

 

Já não existiam ‘sextas-feiras’ ou ‘quartas-feiras, contávamos os dias como se estivéssemos a cumprir penas sociais perpétuas. E foi no dia 54 da quarentena, que ela, como de habitual, desceu com o seu saco cheio de lixo, mais cheio do que a sua arrogância, por tentar disfarçar que a sua peculiaridade a afectava. Olhou para os vizinhos a sua volta e de seguida, encarou-me.

 

- Boa tarde. – Foi a primeira vez que ouvi a sua voz e fiquei surpresa porque raramente ela cumprimentava as pessoas. Cada vez mais, ficava encantada com a sua vulnerabilidade coberta por agressividade.

- Boa tarde. – Baixei um pouco a minha máscara, de maneira que os meus lábios secos respondessem.

 

Era simplesmente um cumprimento, mas eu senti que poderia ser mais. Uma vez uma tia contou-me que o pai do seu filho estava a passar de baixo do prédio dela, ela chamou-o para cumprimentar, convidou-o a subir e desde então vivem juntos maritalmente há mais de vinte anos.

 

Michel chegou e não se desculpou pelo o atraso, e não havia qualquer desculpa porque as ruas de Luanda estavam mais vazias que as prateleiras dos supermercados. O trânsito tornou-se um mito, quem diria que as ruas sem os carros top de gama da elite imune e os candongueiros ordinários se tornariam pacíficas. Eu não comentei nada, evitava chamar-lhe a atenção porque a mamã disse-me que eu devia dar graças á Deus por ter um homem como ele. Para ser sincera, eu acho que ela queria dizer ‘simplesmente um homem’, ou

seja, ter qualquer homem para mim já devia ser um grande agradecimento. Nunca percebi a admiração por esses seres que nos tiravam todo o amor-próprio que conseguimos alcançar através de inúmeras lutas internas.

 

Eu não o amava, mas a minha mãe que era a continuação de uma geração que sofreu quarentenas psicológicas por não ter voz, decidiu que já estava na altura de eu ter um namorado e casar. Acho que para ele também foi automático, não precisou de desenvolver um sentimento por mim. Conhecemo-nos numa missa, a mamã chamou-lhe e apresentou-me. E desde então não foi preciso muito, o pastor disse que eu era boa menina e assim, ele cortejou-me.

 

Ele nunca procurou saber se eu gostava dele ou quiçá se ele gostava de mim. Esse era simplesmente um detalhe na vida robótica dos religiosos. Não me lembro se alguém me perguntou se queria seguir alguma religião, mas entre ralhetes, chapadas, bofetadas e tudo que doía, não havia espaço para perguntas. Eu encarei a religião como ser vegetariana, usava o rótulo para sentir-me melhor do que os outros mas quando visse carne eu me entregava.

 

A minha educação foi através de surras guardadas. Sim, aquelas surras que já não te lembras o que fizeste, mas a tua mãe abriu a gaveta de desculpas e encontrou uma razão para bater-te. O que me admirava era como a aura da mamã mudava completamente na igreja. Quando a via sussurrar os versos, nem parecia a mesma pessoa que nos batia só porque o seu dia não correu como idealizou. Esses espancamentos tornaram-se manchas nas minhas pernas que poderiam desencorajar o interesse de qualquer homem mas como o meu noivo não tinha qualquer atracão por mim, nenhum traço físico prevalecia.

 

 

No caminho, olhava para ele e tentava entender porquê se conformar com alguém que ele não amava só para mostrar ao mundo uma disciplina cega. Mas nem tudo era uma réplica de amor, havia gestos dele que me faziam acreditar que um dia iríamos nos apaixonar.

 

Para evitar as ruas controladas pelos policias, combinamos que ele apanhar-me-ia todos os dias num prédio onde a pressão dos assassinos de zungueiras não era tão acentuada. Nesse mesmo prédio, conheci ela, que para alguns era aberração, mas para mim era uma distração enquanto esperava o Michel.

 

Quando chegávamos a segunda rua a direita depois da Shoprite, encontrávamos sempre policias com uniformes mais legítimos do que eles, e paravam-nos. Eu tirava o meu crachá de ‘profissional essencial’ e eles deixavam-nos avançar. O vírus não ceifou simplesmente vidas mas o ilícito ‘ganha-pão’ dos que juraram nos proteger. Já não havia a famosa ‘gasosa’, nem sumo, nem vinho, e nada que pudesse saciar a sede da ganância deles.

 

Na minha porta, eu esperava que Michel desse uma iniciativa, tocar na minha perna, ou encostar-me para beijar-me, mas não. Os filmes sempre me disseram que qualquer experiência sexual entre duas pessoas abre hipóteses infinitas para o amor. Se calhar ele não me achava atraente, mas quem acharia um corpo musculado com um ar andrógino atraente? A minha mãe sempre disse que tínhamos da ‘boa carne’ mas eu repudiava a nossa fisionomia denominada ‘rija’.

 

Todos os dias esperava ansiosa pelo o fim do meu turno para poder ver a Lua. Lembro-me da primeira vez que ouvi o nome dela. Ela estava na sua habitual rotina, quando um vizinho chamou-a de ‘Kilomba’. Constatei como sentiu-se arrepiada, como se aquela palavra incitava-a e destabilizava-a completamente. Segui a voz do tal vizinho, e vi um rapaz no terceiro andar a sorrir transparecendo o seu prazer de a torturar. Na mesma direção mas mais em baixo, uma senhora de pele escura, encostou-se a janela e disse ‘Lua’. Não sei se realmente tinha motivo para chamá-la, se queria que ela fizesse alguma coisa ou se queria mandar uma mensagem do género ‘A minha filha tem nome’. Pelo o seu tom era óbvio que era a sua mãe e que não tinha

vergonha de o ser.

 

Quando não a visse, olhava para janela de grades onde vi a sua mãe, e procurava por ela. Uma vez a vi debruçada na mesma a devorar um livro. O Michel sempre disse que ler um livro evitava dores. Demorei a entender a mensagem, mas com o tempo ingeri que para amadurecemos temos que sofrer e ler uma boa história nos privava de ter que passar por certas dores.

 

Ela tinha uma blusa amarela, que combinada com a cor os seus pelos, principalmente, as suas sobrancelhas. Observei-a a esforçar a sua visão, e notei que ser desprovida de melanina enfraquecia a sua visão. Porém, ela seria ainda mais fraca se conseguisse enxergar todos os olhares direcionados a ela. Quando somos diferentes, somos obrigados a conviver com risos omitidos e piadas dissimuladas que tornam a nossa graduação no mundo cada vez mais débil.

 

Naquele dia, ela apercebeu-se que eu olhava para ela e saiu da janela. Ela já estava habituada a olhares, mas eu queria que ela soubesse que o meu era diferente. Não queria fazer pouco dela mas sim saber mais dela. Queria mais informações para alimentar a minha obsessão, que nasceu de aprecia-la diariamente a mesma hora com o seu enigma andante, nos exactos seis minutos em que ela descia as escadas do seu prédio para ir deitar o lixo.

 

As vezes imaginar alguém é melhor do que conhecer, é como ler um romance e sonhar com as personagens. Talvez eu e o Michel devíamos ter ficado só no olhar. Ainda me lembro quando ele era simplesmente mais um rapaz iludido pela sua religião, que chegava sempre cedo as nossas reuniões e ficava no seu canto a julgar com os olhos.

 

 

Eram 18h05 quando saí do hospital, atravessei a estrada a correr, carregando um livro que falava sobre escravaturas mentais durante isolamentos. Quando cheguei ao prédio, não havia sinal dela. Tirei o livro para fingir que me concentrava nele. Michel estava mais uma vez atrasado, e não havia sinal de Lua. Decidi entrar no prédio. Tinha um cheiro kisaca, fui subindo as escadas como se tivesse destino, mas não sabia exactamente o que procurava.

 

Ouvi uma voz trémula, e cada degrau a vulnerabilidade era maior. A Lua estava sentada nas escadas frias e escorregadias, a lagrimar. Olhei para ela, e tentei dizer algo mas não consegui. Desci as escadas com mais vontade de saber quem ela era do que quando as subi.

 

Encontrei um Citroen azul escuro mal parado. De certeza que não tinha encontrado um lugar melhor e já estava impaciente, mas ia disfarçar como sempre. Era difícil ler o Michel, ele nunca revelava emoções. Dizem quem finge ser alguém, não tem defeitos.

 

Entrei no carro e desculpei-me. Ele aceitou as minhas desculpas e não perguntou nada. Sempre achei pedidos de desculpas os actos mais manipuladores da história da falsidade mas ele não se importava que eu fosse manipuladora. Qualquer defeito meu, segundo ele, ia ser curado com religião.

 

Eu já sabia muito dela, sabia que só descia as 18h porque a esta hora o sol já estava cansado; sabia que a sua expressão não reflectia o seu interior; sabia que quando tivessem crianças lá em baixo, ela espera elas retiraram-se para poder descer porque supostamente elas tinham medo dela; mas não sabia o porquê que chorava...

 

- Porquê que as pessoas choram? – Perguntei ao Michel. Eu raramente falava e parecia que ele não fazia questão que eu o fizesse.

 

- Não sei, mas o meu pai sempre disse que chorar alivia...e se não aliviar, devemos recorrer a religião. - Era essa arrogância dos religiosos que me irritava. Achando que todo mundo precisava de practicar o mesmo hobbie que eles. Porém, quando ele disse "meu pai" acordou em mim uma vontade de também poder fazer referência do meu pai, mas eu não tinha um pai. Será que a Lua também não tinha um pai e por isso estava assim? Será que o pai a abandonou por não aceitar uma filha albina? Conspirei a possibilidade dentro de mim.

 

Há famílias que não aceitam filhos com certas condições e tratam-os com uma certa indiferença. Por outro lado, há outras que pensam que os seus filhos são anjos por terem uma certa doença ou anomalia. Crianças com cancro ou síndrome de down são vistas como sinónimo de pureza. Talvez ela vivia num lar que assumia essa atitude, e assim, desencadeava mimos excessivos que poderiam estar a destruí-la aos poucos. Ou seria os side effects da isolação, em que os demónios dela desrespeitavam as regras de distância

social e faziam-lhe uma visita.

 

Enquanto delirava nos meus pensamentos, lembrei-me do dia que o vizinho chamou-lhe de ‘Kilomba’. Ousei pensar que se calhar essa era a razão do seu desespero. Será que ele sabia o poder que tinha de afectá-la ou a energia dela diária transparecia que nada a afectava? Acreditava que os cuspes verbais dele trouxeram-lhe danos psicológicos e seria difícil desinfectá-la destas impurezas psicológicas.

 

Pedi ao Michel para parar numa farmácia, e ele como namorado perfeito assim o fez. A farmácia estava completamente limpa. Sempre questionei porquê que as farmácias eram demasiadamente nítidas e os hospitais banhados de sujidade. Mas com o tempo, aprendi que quando os pacientes chegam ao hospital, trazem o problema e as farmácias apresentam-lhes as soluções.

 

Olhei o estabelecimento todo a procura de algum medicamento que eu pudesse levá-la para acalmá-la, libertá-la da dor. Uma senhora aproximou-se e perguntou-me:

 

- O que procuras menina? - Ela observou a minha bata branca, enquanto eu observava como o preço do álcool gel tinha subido.

 

- Algo para depressão...- Alguns nomes eram familiares, mas saúde mental não era a minha área.

 

- Depressão? Tão jovem e já com depressão... - Ela exclamou, fazendo troça do sofrimento que nem era meu.

 

- Não sou eu... Se calhar não é depressão mas sim...hum...para alguém que não esteja bem... – Não tinha licença emocional para diagnostica-la, mas ultimamente todos sofremos dessa pandemia denominada depressão.

 

- Mas tens alguma receita?

 

- Não, não...tenho uma amiga que esta a passar uma situação indelicada e queria ajuda-la de alguma maneira.

 

- Ah! Percebo... mas sem receita não posso fazer nada. – Ela cruzou os seus braços e deu-me costas.

 

 

As palavras dela ‘não posso fazer nada’ fizeram eco na minha cabeça o caminho todo.

Como enfermeira, era doloroso ver alguém a sofrer e não poder fazer nada. Mas os meus poucos anos de experiência no hospital São José, ensinaram-me a não personificar a dor dos outros. Aquele entre e sai, de gritos e alívios eram indiferentes para mim. Mas porquê que de repente a dor de uma estranha afectava-me tanto?

 

Uma vez li que o mundo é uma analogia e que o universo busca incessante maneiras de nos educar. A dor da Lua poderia ser a dor que eu causei alguém, e ajudá-la se calhar seria a oportunidade de me redimir.

 

 

No dia seguinte, decidi que ia ganhar coragem e ia falar com ela. Não trazia comigo nenhum remédio, simplesmente saí do serviço mais cedo e fui formulando como falar com ela. O barulho dos gatos a fugirem disse-me que ela estava a aproximar-se. Parecia que até eles tinham medo dela. Ela com a sua pele perfeita, sem imperfeiçoes, dirigiu-se ao contentor do lixo preto que de tantos anos tornou-se cinza.

 

- Acabei esse livro em uma semana. – Ela afirmou, reparando no livro que eu tinha comigo. Não foi preciso eu gaguejar mentalmente o que ia dizer, ela tomou a iniciativa.

 

- Já estou a ler há duas semanas...gosto de ler devagar. – Eu respondi admirando os seus pelos loiros.

- E estar a gostar?

 

- Estou e tu? Curou-te? – Perguntei metaforicamente. O livro tinha como título ‘Você pode curar a sua vida”.

 

- Está a curar...- Ela respondeu sem disfarçar a tristeza que aquela pergunta provocava. E por hoje era tudo, deixou-me naquele banquinho a frente do seu prédio escuro e cheio de graffitis e foi para a sua cela.

 

 

Ouvi a buzina do carro do Michel. Abri a porta do carro e senti um cheiro a gengibre, que de certeza que era proveniente das mil receitas fictícias que as pessoas partilhavam para acabar com o vírus. Quis que ele interpelasse o meu estado da mesma maneira que eu notava cheiros, que visse que eu não estava bem e que precisava de falar. Raramente falávamos, parecia que para ele, mulher era simplesmente um vaso para enfeitar a sala. Sempre quis ser amiga do meu parceiro, mas a minha mãe e todos da nossa igreja pregaram como a nossa relação devia ser.

 

 

 

Mais um dia, e esperava pacientemente por ela. Ruí as minhas unhas, e senti o gosto do verniz para acalmar a minha ansiedade em vê-la. Decidi mais uma vez intrometer-me e entrar no seu prédio. Subi as escadas já sabendo aonde encontrá-la.

 

Ela estava mais uma vez sentada nos degraus, mas dessa vez não chorava. Estava tão concentrada a ler um romance britânico que o barulho dos geradores e os meus passos não a desconcentraram.

 

- Estás a procura de alguém? – Ela apercebeu-se da minha presença.

 

- Sim.

 

- Quem? – Ela parecia que sabia que eu estava a mentir, mas fingiu que acreditava em mim.

 

- O Michel... – Foi o primeiro nome que me veio à cabeça e lembrei-me que se calhar já estava lá em baixo a espera.

 

- Não conheço.

 

- Se calhar estou no prédio errado...- Eu sorri, tentando disfarçar.

 

- Já acabaste o livro?

 

- Ainda não...e tu o que estás a ler?

 

- É um romance...sobre uma rapariga que quer ir embora...

 

- Ir para aonde? – Eu fiquei intrigada.

 

- Para o céu...- Ela coçou as suas calças de linho, completamente amarrotadas, e traduziu o seu estado de inquietação.

 

- Suicídio? – A palavra arrepiava qualquer um.

 

- Não, paz... – Ela fechou o livro com força. E levantou-se, preparando-se para entrar em casa.

 

- Paz para quem? Para ela ou para os outros que ficam? – O meu tom depreciava a decisão da personagem.

 

- Para todos...- Ela respondeu num jeito sátiro.

 

- É impossível... ninguém ficaria em paz com a perda de alguém...- As minhas palavras eram medicinais, mas não tinham qualquer feito para ela.

 

- Eu ficaria. – A sua dor era visível.

 

- Eu não. – Afirmei, mostrando que poderia falar comigo.

 

- Estou cansada. – Essa frase foi suficiente para entender que ela era a rapariga do livro.

 

- Isso tudo vai passar...deve ser desse isolamento...estamos todos a sofrer de ansiedade...- Vi nos olhos dela que ela vivia em quarentena a vida toda. Imaginei ela na escola, a evitar por o dedo no ar mesmo sabendo a resposta, de maneira a fazer de tudo para passar despercebida. Ela vivia sempre condicionada pela sua condição.

 

- Não vai...vai ser sempre assim... – Ela parecia que ia chorar. Subi alguns degraus e aproximei-me a ela. Toquei-lhe na mão para mostrar o meu apoio e compreensão, e por alguns minutos quis ser a anestesia dela.

 

- Para tudo há um jeito...acredita...- Sorri para ela, ela precisava de um sorriso para ver a veracidade das minhas palavras.

 

- Eu quero desparecer... – Ela confessou.

 

- Fica calma...- Essa expressão nunca ajuda mas eu tentei.

 

- Eu nunca soube que era albina até as pessoas dizerem…

 

Essa foi a primeira de muitas revelações naquelas escadas, enquanto Michel esperava com a sua paciência que lhe foi herdada pela sua religião. Lua contou-me que para ela a sua primeira vez foi mágica, mas para o seu companheiro foi simplesmente um experimento. Relatou-me enquanto soluçava de lágrimas, que era constantemente e brutalmente tocada para saciar desejos e fetiches. Partilhou também que por mais que a sua mãe a trata-se como uma princesa, os outros familiares não a viam como realeza. Os irmãos dela negavam-se a comer a comida que ela cozinhava e que em casa tinha um quarto só para ela, não por agrado mas sim porque eles recusavam-se a dividir qualquer coisa com ela. Ela era um vírus dentro de casa.

 

Parecia que enquanto usávamos as mascaras para nos proteger contra o COVID-19, Lua vivia num mar sem máscaras de oxigénio, em que se afogava, engolindo cada vez mais água e perdendo o ar com a imensidão das ondas de descriminação e ofensas. Percebi que a sua dor era maior do que as humilhações e os comentários diários. E que por mais que os romances e obras motivacionais tentassem exorciza-la do que as pessoas diziam, eles viviam no seu consciente. Uma vez numa reunião da nossa igreja, o pastor chamou um menino para falar da sua angústia e ele disse que não conseguia explicar mas que sentia uma força que queria derrotá-lo e constantemente o lembrava que ele era incapaz. Ele foi aconselhado a rezar todos os dias e uns dias depois encontramo-nos todos no óbito dele a rezar.

 

Desci as escadas a esmurrar de revolta por fazer parte deste mundo. No carro, o Michel estava a ouvir os seus louvores e a mascar pastilha. Senti-me irritada com a sua presença, e o barulho do mascar dele parecia que ele triturava o meu cérebro com tudo que tinha acabado de ouvir.

 

Agora entendo a maneira de andar, a cara franzida e a sua raiva…e essa raiva estava a apoderar-se em mim. Aumentei o barulho da rádio para minimizar o som da pastilha sem gosto na boca de Michel. Adormeci no caminho e sonhei com ela: ela estava no Mussulo, e a areia cobria e apaziguava o seu estado mental. Ela disse-me que nunca foi a praia, e talvez estar nesse cenário ela encontraria a sua panaceia.  

 

Nunca admirei os homens, mas passei a detestá-los depois de ouvir os lamentos da Lua. Os livros de história sempre espelharam a podridão deles e de como usavam a tradição para torturarem mulheres. Como é possível mulheres cortarem seus dedos para vangloriar homens que dormem connosco com o único intuito de saber a sensação?

Decidi terminar com o Michel. Ele não era culpado pelos crimes de outros homens, mas na gramática da vida entendi que ele e os outros seres vergonhosos eram todos ‘Homônimos perfeitos’. E não queria mais fazer parte desse universo de religião forçada, onde celebrar aniversário era excesso de vaidade e representava egocentrismo. Queria ser egocêntrica, dava tudo para viver num egocentrismo infinito do que num mundo cheio de regras e onde respirar era ostentar.

 

 

Era mais um dia de incessantes testes clínicos e febres mais altas que a temperatura tropical de Luanda. Tirei as luvas mais apertadas do que o meu coração e fui ao encontro dela. No caminho, deparei-me com um miúdo a correr, ele tentava vender jornais, mas os policias não o deixavam. Havia uma overdose de noticiais, mas o confinamento inflacionava as suas vendas.

 

Cheguei ao prédio e não esperei por ela lá em baixo. Subi até ao andar onde nos encontramos. Entre os andares dos prédios, existia um ‘entre-andar’ com uma janela sem corrimão, completamente convidativa para pessoas que tinham ideias como as delas. E lá estava ela, a admirar a vista. O seu cabelo quase loiro estava envolvido no charme das suas tranças petulantes e o seu cheiro de aveia sentia-se de longe.

 

Olhei para ela, estudei todos os seus traços e quis memorizá-los para guardar como lembrança. Aproximei-me silenciosamente, não quis atrapalhar a sua decisão. Ela continuava a admirar as ruas extintas da mutamba, e ria-se, como se estivesse a usufruir a sua última risada. Fazia-me lembrar quando era mais nova e ia para os prédios dos Coqueiros assistir os shows do estádio sem ter que pagar bilhete. A vista da varanda dava-nos acesso VIP as músicas do Anselmo Ralph. E ela estava a um passo da área VIP da vida, onde ia dançar sem se preocupar com os olhares intoleráveis a sua volta.

 

Observá-la no auge do muro de tijolos, era como assistir a navegante da lua a ganhar os seus poderes, e ela ia usá-los para voar. Ela deu um passo para atrás, parecia que a sua coragem tinha adormecido. Senti que finalmente poderia fazer algo por ela, estuprar-lhe da dor. Aproximei-me dela, empurrei-lhe devagar, e ela consentiu. Enquanto ela caía, senti que estava leve, finalmente ia descansar no Mussulo paradisíaco.

 

 

Lunga Noélia Izata

Maio 2020

 


 

 Photo credit:

Miraldina de Jesus

Tidiane Rangel

Juvenalia Brito

 

Conto "A História não é sobre mim" Conto "A História não é sobre mim" Reviewed by Lunga Noélia Izata on dezembro 30, 2020 Rating: 5

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About me

I am willing to share my own stories and use my platform to talk about movies, books, music, volunteering, traveling and relationships.

My first publication was a fiction novel ‘Sem Valor’ (meaning Worthless) where I addressed autism and prostitution; wrote a short-fiction story ‘Hello. My name is Thulani’ featured on ‘Aerial 2018’ about transgender issues and represents an allegory of identity crisis, meaning everyone is in transition to something; co-authored with six African authors on a motivational book ‘Destiny Sagacity’ about the power of destiny; my memoir ‘The story is about me’ tells my adventures volunteering in Uganda and staying with a family in the village of Wakiso; and my recent offering “Read my Book’ is a fictional approach to apartheid.

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